sexta-feira, outubro 20, 2006


– Falcão, Deus não existe. Ele é uma invenção espectacular do cérebro humano para suportar as limitações da vida. Desculpe-me, mas para mim, a ciência é o deus do ser humano.
Numa reacção surpreendente, Falcão levantou-se. Subiu para um banco da praça e começou a chamar todos os que por ali passavam. Com gestos histriónicos, bradava:
-Venham! Aproximem-se! Vou mostrar-lhes Deus!
Num instante, reuniu um grupo.
Marco Polo ficou apavorado. Nunca vira Falcão reagir assim. Tentava acalmá-lo, sem êxito. Ele continuava a gritar:
-Deus está aqui! Acreditem! Vocês ficarão perplexos ao vê-lo.
Marco Polo achava que Falcão entrara num repentino surto psicótico, estava a ter uma alucinação. Procurava ansiosamente pegar no seu braço para que ele se sentasse. De repente, Falcão calou-se. Estendeu as duas mãos para Marco Polo e disse em altos brados:
-Eis Deus aqui em carne e osso!
Marco Polo ficou assustado. Um burburinho reinou entre os que o ouviam.
-Acreditem! Este jovem é Deus! Porque afirmo isto? Porque ele acabou de me dizer que Deus não existe, que é um mero fruto do nosso cérebro! Vejam só! Se este jovem não conheceu os inumeráveis fenómenos dos tempos passados, se ele nunca percorreu os biliões de galáxias com os seus triliões de segredos, se ele não desvendou como ele mesmo consegue entrar no seu cérebro e construir os seus complexos pensamentos, e apesar de todas essas limitações, ele afirma que Deus não existe, a conclusão a que cheguei, meus amigos, é que este jovem tem de ser Deus. Pois só Deus pode ter tal convicção!
A multidão ficou boquiaberta. O discurso do indigente era tão inteligente que esfacelou não só a soberba de Marco Polo, mas o orgulho das pessoas que o ouviram. O jovem amigo ficou vermelho e espantado.
Falcão desceu do banco e sentou-se. Desembrulhou uma sanduíche e começou a saboreá-la. Com a boca cheia, disse a Marco Polo:
-Sabe que sabor tem esta sanduíche?
Marco Polo, envergonhado, meneou a cabeça dizendo que não.
Falcão prosseguiu:
-Se não tem segurança para falar de algo tão próximo e visível, não fale convictamente sobre algo tão distante e inatingível. Não é sensato.
O jovem ficou bloqueado. Pela primeira vez não encontrou qualquer frase para rebater. Disse apenas:
- Não precisava de exagerar.
Falcão retrucou:
- Se você disser apenas que é ateu, que não acredita em Deus, a sua atitude é respeitável, pois reflecte a sua opinião e convicção pessoal. Mas dizer que Deus não existe é uma ofensa à inteligência, pois reflecte uma afirmação irracional. Não seja como alguns meninos da teoria da evolução.
-Como assim? – perguntou intrigado Marco Pólo.
-Alguns filósofos acham que certos teóricos da evolução possuem uma arrogância insana. Não estou a criticar as hipóteses da evolução biológica, mas a arrogância científica sem alicerces. Vários desses cientistas negam veemente a ideia de Deus apenas porque se apoiam em alguns fenómenos da sua teoria. Como você, esquecem-se que desconhecem biliões de outros fenómenos que tecem os segredos insondáveis do teatro da existência. São meninos que brincam com a ciência, construindo o seu orgulho sobre a areia.
Marco Polo ficou abalado com a ousadia, com o raciocínio esquemático e a criatividade de Falcão. Os darwinistas eram intelectuais reverenciados. Nunca ouvira ninguém fazer-lhes uma crítica tão contundente, a não ser os religiosos. Falcão tinha trazido a discussão desse delicadíssimo tema não para o campo da religiosidade, mas para o campo dos limites e alcances da própria ciência.
Marco Polo tentou organizar o seu pensamento e perguntou:
- Mas não são os evolucionistas respeitados pela comunidade científica?
- São respeitados, mas, para mim, estão aprisionados no cárcere da biologia. Sem romper esse cárcere e abraçar o terreno das ideias da filosofia, serão redutores e não expansores do conhecimento. Precisam de seguir o caminho de Einstein.
- Como assim?
- Einstein disse que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Ele brilhou porque amava a filosofia. Não tinha um cérebro privilegiado como muitos ingénuos cientistas pensavam. Tinha uma imaginação privilegiada. Quando desenvolveu os pressupostos da sua teoria, era um jovem de 27 anos. Tinha menos cultura académica do que muitos universitários da actualidade. Mas porque brilhou ele, enquanto os universitários são opacos? Brilhou porque usou a arte da dúvida, libertou a sua criatividade, aprendeu a pensar com imagens.
A partir deste comentário, Marco Pólo interessou-se pela história de Einstein. Passou a estudá-la.
-Einstein era ousado, queria conhecer a mente de Deus – completou.
Falcão, não era menos ousado, passava a vida a tentar desvendá-Lo à sua maneira. Ele amava Deus, mas não era religioso nem defendia uma religião. Considerava que só um deslumbrante Artista, capaz de ultrapassar os limites da nossa imaginação, poderia ser o Autor do próprio imaginário humano e de toda a existência.
Contou-lhe que ele e o Poeta aprenderam a procurar e a relacionar-se com Deus nas suas misérias psíquicas, e que este relacionamento foi um dos segredos que os levaram a suportar as suas perdas e a oxigenar o seu sentido de vida. Assim, sobreviveram ao caos. Para eles, cada ser humano, em especial os cientistas, deveria posicionar-se como eterno aprendiz. E rematou:
- A sabedoria de um ser humano não está no quanto ele sabe, mas no quanto ele tem consciência de que não sabe. Você tem essa consciência?
Após uma pausa, Marco Polo disse, pensativo:
-Creio que não.
- O que define a nobreza de um ser humano é a sua capacidade de ver a sua pequenez. Você vê-a?
-Estou a tentar – disse Marco Polo, ameaçado pela inteligência dó filósofo.
-Nunca deixe de tentar.
Em seguida, Falcão fez um momento de silêncio. Ponderou as suas atitudes e teve coragem de pedir desculpa a Marco Polo pela situação constrangedora por que o fizera passar.
-Desculpe-me. Às vezes, acho que algumas das minhas reacções são sequelas do meu passado, da minha doença..
-Por favor, não se desculpe. Eu é que fui estúpido, arrogante.
Vendo que o jovem Marco Polo reflectia sobre os mistérios da existência, Falcão acrescentou:
-Você pode duvidar de que Deus existe, mas Deus não duvida de que você existe. É nisso que creio.
Marco Polo ficou inquieto. Esfregou as duas mãos no rosto. Suspirou, colocou a mão no queixo, apoiou o cotovelo sobre a coxa como um pensador e perguntou:
O que pensavam os filósofos a respeito de Deus?
-Lembre-se do que eu lhe disse: muitos filósofos acreditavam na metafísica. Eles não tinham medo de argumentar e discutir a respeito de Deus. A ciência tem medo de debater sobre Ele por receio de pender para uma religião e perder a individualidade. Nós não sabemos quase nada sobre a caixa de segredos da existência. Milhões de livros são uma gota no oceano. Lembre-se, somos uma grande pergunta à procura de uma resposta nos poucos anos de vida.
-Mas filósofos como Marx, Nietzsche e Sartre foram ateus.
Falcão fitou vagarosamente o amigo e, como se estivesse iluminado, disse:
-Há dois tipos de Deus: um Deus que criou os homens, e outro que os homens criaram. Para mim, esses filósofos não acreditavam no Deus criado pelos homens. Eles foram contra a religiosidade da sua época, que dilacerava os direitos humanos, mas não são ateus puros. Todavia, não posso falar por eles.
O jovem pensou e inquiriu:
-Quem somos? O que somos? Para onde vamos?
-Frequentemente, faço-me tais perguntas. Quanto mais as faço, mais me perco e, quanto mais me perco, mais procuro achar-me.
Em seguida, Falcão emendou:
-Olhe para as pessoas à nossa volta. O que vê?
-Pessoas de fato, mulheres bem vestidas, jovens a exibir os seus ténis, adolescentes a pentear o cabelo, enfim, pessoas que passam.
-A maioria dessas pessoas vive porque respira. Já não perguntam «quem são», «o que sou». Estão entorpecidas pelo sistema. O ser humano actual não ouve o grito da sua maior crise. Cala a sua angústia porque tem medo de se perder num emaranhado de dúvidas sobre o seu próprio ser. No começo do século XX, a ciência prometeu ser o deus do Homo Sapiens e responder a essas perguntas. Mas ela traiu-nos.
-Porque é que nos traiu?
-Primeiro, porque não desvendou quem somos; continuamos a ser um enigma, uma gota que por um instante aparece e logo se dissipa no palco da existência. Segundo, porque, apesar do salto na tecnologia, ela não resolveu os problemas humanos fundamentais. A violência, a fome, a discriminação, a intolerância e as misérias psíquicas não foram debeladas. A ciência é um produto do ser humano e não um deus do ser humano. Use-a e não seja usado por ela.
Ao esquadrinhar a sua inteligência, Marco Polo confessou honestamente:
-O orgulho é um vírus que contagia a minha mente.
-Contagia todos. Até um psicótico tem ideias de grandeza.
-Será que é possível destruir o orgulho?
-Não creio. A nossa maior tarefa é controlá-lo.
Para finalizar a complexa aula, voltou-se para o jovem amigo e completou:
-A sabedoria de um ser humano não é definida pelo quanto ele sabe, mas pelo quanto ele tem consciência de que não sabe…
in Cury, Augusto - A vida de um pensador

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