terça-feira, fevereiro 26, 2008

A Neblina do Passado



Muito se tem divulgado e escrito sobre o último romance de Leonardo Padura editado entre nós, A Neblina do Passado.
A verdade é que é imprescindível na biblioteca de qualquer amante de romances policiais e de quem quer conhecer a vida contemporânea do povo cubano.
Mario Conde é a personagem principal, um polícia que já deixou de o ser, ainda que mantenha a natureza inquisitiva e detivesca.


- Diz-me a verdade, meu amigo, uma pessoa pode ser maricas por uns tempos e depois deixar de o ser?
- Nem sonhes. A mariquice não tem retrocesso. Se alguma vez engoliste espadas, isso já ninguém o conserta... E um tipo que já foi polícia nem que se mate o deixa de ser. (pág.91)




Conde dedica-se agora a outros negócios, inclusive à venda de livros, assim descobre uma biblioteca intacta e nela um livro que contém uma página de uma revista com o anúncio do abandono de uma cantora dos anos 50, Violeta Del Río.
Esta descoberta vai atormentá-lo e Conde vai procurar descobrir a verdade nunca descoberta sobre o que aconteceu a Del Río, mergulhando na história recente de Cuba e na realidade soçobrante contemporânea.


A Neblina do Passado é um policial, uma tentativa de descoberta de alguém de quem já ninguém se lembra, mas ao mesmo tempo leva-nos à Cuba dos anos 40-60 e à Cuba mais recente (90-2000). Mostra-nos as misérias do comunismo, no homem comum.
(...) Tu sabes, Vivemos numa selva. Desde que saímos da casca estamos rodeados de abutres, de gente decidida a lixar-nos, a arrancar-nos dinheiro, a gamar-nos a miúda, a denunciar-nos e a ver-nos tramados para poderem ganhar pontos e subir um pouco... Há uma monte de gente que vai aguentando, para não complicar a vida, e a maior parte o que quer é pôr-se a andar, pôr água de permeio, nem que seja para Madagáscar. E os outros que se amanhem... Sem esperar muito da vida.
-Isso não se assemelha ao que dizem os jornais - espicaçou-o Conde, para o ver saltar, mas Yoyi era ágil de mais.
- Que jornais? Uma vez comprei um, para limpar o rabo, e fiquei com ele sujo, juro-te...
- Ouvista falar do homem novo?
- Isso o que é? Onde o vendem?
(pp 74-75)


A desilusão para com o presente e a dicotomia partir/ficar.


- Somos diferentes: temos três patas ou só uma, não sei bem... O pior foi terem-nos tirado a possibilidade de viver ao mesmo ritmo que viviam as outras pessoas no mundo. Para nos protegerem...
-Sabem o que mais me lixa? - interrompeu-o Coelho, revelando os dentes à porta do quarto. - Terem-nos desbaratado o sonho de podermos ir a Paris com vinte anos, que é quando ir a Paris é bom (...)
-Estivemos a viver durante todo o tempo, todos os dias, a responsabilidade de um momento histórico. Empenharam-se em obrigar-nos a ser melhores - disse Coelho, mas Conde negou abanando a cabeça, quase sem se poder conter.
- Então, por que razão há agora tantos jovens que querem ser rastafáris, roqueiros, rappers e até muçulmanos, que se vestem como se fossem palhaços, que se maltratam enchendo-se de argolas e tatuando-se até aos olhos? Por que razão há tantos a meter drogas durissimas, tantos que se prostituem, que se tornam chulos, travestis e suam colares de santeria (...) Por que razão há tantos que querem sair daqui?
- Eu tenho um nome para isso - retomou a batuta o historiador do grupo: - cansaço histórico. (...)
(pág.174)

Aliás, algo que domina o romance é este cansaço e tensão entre ficar e partir. E entre o desejo de ficar há a realidade, mais brutal que nunca, mais miserável que nunca, mais "libertadora".


-Muito trabalho, uma loucura. Nem imaginas como estão as coisas. Aquilo antes era uma brincadeira de crianças, agora é a doer. Os roubos com uso de força estão na ordem do dia, a droga está por todo o lado, os assaltos são uma praga, a corrupção cresce mais que erva daninha, não acaba por mais que se arranque... E nem te falo do proxenetismo e da pornografia. (pág. 91)

Conde esforçara-se ao máximo por sorrir, convencido de que seria incapaz de ir para a cama com aquela mulher, ou mesmo de beijá-la, e olhou para o Africano, que gozava com a situação. Nessa altura compreendeu que toda a sua liberalidade moral era apenas uma brincadeira de crianças naquele mundo alucinante, onde o sexo adquiria outros valores e usos e se transformava numa forma de vida, num meio de desafogar as misérias e tensões.
(pág. 194)

Mas A Neblina do Passado é também um romance sobre os livros, sobre o seu papel cultural e financeiro, sobre a amizade, sobre a nostalgia do passado desconhecido ou meramente vislumbrado, sobre o manter-se à tona, sobre a natureza humana, sobre a loucura sã (quem chegar ao fim, perceberá melhor), sobre a poesia e a música, sobre os boleros e a sua natureza.




Depois de vivermos
vinte desenganos
que importa mais um, depois de conhecermos
a batalha da vida
não devemos chorar.
Temos de saber
que tudo é mentira,
que nada é verdade.
Temos de viver o momento feliz,
temos de gozar o que pudermos gozar,
porque contas feitas, no fim,
a vida é um sonho
e tudo se perde.
A realidade é nascer e morrer,
para quê enchermo-nos de tanta ansiedade,
se tudo não passa de um eterno sofrer
e o mundo se apresenta... sem felicidade.
(Arsenio Rodríguez)

Para ler devagarinho, com prazer.
9/10

1 comentário:

Rute Carla disse...

Gostei mt do poema.